20 de dezembro de 2011

Drugstore Bukowski Recomenda [Cinema]: "Melancholia" (2011)



Não é todo dia que temos a chance de depararmos com uma obra de arte - aquela no sentido clássico de algo a ser contemplado, repleta de sentidos e significados. Ainda mais nos tempos atuais em que presenciamos cada vez mais uma banalização e empobrecimento da indústria cultural. Vivemos um paradoxo de contar, por um lado, com um excesso de informação e acesso à ela, e, ao mesmo tempo, pouco tempo ou paciência para reflexão e dedicação às coisas belas, profundas e difíceis da vida.
 
São as "consequências da modernidade" como Anthony Giddens havia apontado. O capitalismo e mais precisamente a sociedade da informação nos conduziu ao estado atual em que a velocidade, simplicidade, praticidade e principalmente, a superficialidade nos tornou prisioneiros de uma temporalidade louca, que não comporta outros ritmos e variações.

Toda essa introdução teórica e filosófica para falar do último filme de Lars Von Trier, diretor que já nos brindou com obras de arte modernas (sim, nada desse papo pós-moderno!) como Dançando no Escuro (2000) e Dogville (2003), e agora nos presenteia com um filme lindíssimo que conjuga drama psicológico com  catástrofe natural. 

Esta combinação não é nada simples. Envolve diversos discursos e linhas de condução narrativa-visuais complexas, que tornam o filme de difícil assimilação para a maior parte do público. Quem vai atrás de uma tragédia catastrófica hollywoodiana, nos moldes de "Fim dos Dias" ou "Independence Day "com certeza se decepcionará, pois o filme passa longe desses filmes-clichê, carregados de sensacionalismo e sentimentos comuns.

O filme de divide em duas partes, sendo que a segunda confere sentido à primeira e conserva certa independência, poderia ser um capítulo à parte - ao contrário da primeira parte que força o espectador a segurar sua onda e esperar pela segunda parte. E ai já nos confrontamos com um exercício de lidar com uma outra temporalidade, recurso do diretor que foi compreendido por poucos. Os dez primeiros minutos nos conduzem a cenas belíssimas em uma câmera mais que lenta, como fotografias que vagarosamente pequenas partes se movem. Assim você é conduzido à uma experiência inversa ao que vem sendo feito no cinema atual: filmes carregados de cenas rápidas com ação e narrativas idem. Para àqueles que conseguem se desligar da temporalidade contemporânea por alguns minutos e embarcar nesta viagem visual e sonora (com a abertura da ópera Tristão e Isolda de Richard Wagner) será algo magnífico e que te dará pistas do que está por vir - e que não é nenhuma surpresa, pois o fim já nos é dado de início. E o resto é pura viagem, somente para aqueles que toparem embarcar numa profusão de sentimentos de dor, angústia e desalento.

Fica difícil realmente juntar os simbolismos visuais com toda a filosofia e psicologia por trás do enredo, mas não custa tentar. Além do ritmo lento que nos leva à uma experiência subjetiva semelhante à depressão¹  (e que eu chamei antes de uma vivência de outra temporalidade), há diversas aproximações com o tema. A primeira parte é focada na personagem Justine (interpretada por Kirsten Dunst, em sua mais memorável interpretação) que está se casando e faz de tudo para poder realmente vivenciar essa passagem. Mas o tempo todo ela "escapa" do que está acontecendo. Ora visivelmente triste, ora esquivando-se de todos os rituais cerimoniais, o que fica claro é que ela não consegue encaixar-se no modo "normal" de conduzir a vida: estar se casando com o amor de sua vida, frente à toda sociedade que assiste e espera que o casal tenha filhos e sejam "felizes para sempre"! Há um misto de medo, insegurança mas principalmente um sentimento de não-pertencimento (tipo, "o que estou fazendo aqui" ou  "é isso que realmente escolhi para minha vida?").


Essa primeira parte é incomôda. Nos vemos um pouco ali, naqueles absurdos da vida cotidiana, naquela cena que também já intepretamos algumas vezes no teatro da vida real. Cenas muitas vezes "forçadas", que vivenciamos as vezes apenas para fazer parte do status quo, desse modus operandi como diria Bourdieu. É assim que a personagem melancólica Justine sente-se: querendo estar vivenciando tudo aquilo ali. Além de que nessas passagens que causam constrangimento até para o espectador o diretor faz questão de destilar sua ironia através dos personagens da irmã da noiva e seu marido que foram "os" responsáveis por toda a festa e que justamente representam o ideal de família feliz e bem sucedida, tanto economicamente quanto afetivamente (pelo menos é o que se supõe até a primeira metade do filme).

A metáfora do planeta Melancholia se aproximando da Terra pode levar à diversas interpretações. Vejo por um lado a personagem Justine se esforçando para superar sua depressão e ajustar sua personalidade melancólica ao ritmo e modo de vida modernos enquanto a sombra da melancolia se aproxima novamente. Por outro lado, a forma como ela aceita tranquilamente a catástrofe iminente, enquanto sua obsessiva irmã entra em pânico, demonstra que para o depressivo o terror externo não é nada perto de sua dor psicológica.

O confronto com o fim, com a nossa maior limitação, é algo racionalmente postergado e evitado pela maior parte dos neuróticos. Já para o depressivo o contato com a morte se tornou comum e até desejado. Se para Justine a dor do existir já era imaginariamente uma constante, para Claire (sua irmã), somente a iminência da morte pode realmente confrontá-la com esta terrível e, por que não, bela experiência.

Ficha Técnica

Diretor: Lars von Trier
Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Charlotte Rampling, John Hurt, Alexander Skarsgård, Brady Corbet, Stellan Skarsgård
Roteiro: Lars von Trier
Fotografia: Manuel Alberto Claro
Duração: 136 min.
Ano: 2011
País: Alemanha/ Dinamarca/ França/ Itália/ Suécia
Para quem gosta de: drama psicológico, viagem filosófica, cinema alternativo, psicanálise.
Pontos Altos: fotografia, enredo, interpretação das atrizes, experiência subjetiva.
Pontos Baixos: n/d
Avaliação Drugstore Bukowski: 9,5.

Nota

¹ Não irei entrar aqui na discussão sobre os conceitos e diferenças psicopatológicas entre melancolia e depressão, mas acredito que o filme aborda a questão da depressão em vários de seus aspectos, sendo que o termo "melancholia" pode ser interpretado hoje como "depressão" no sentido que é abordado no filme, porém historicamente e pelo viés psicanalítico há muitas diferenças.