22 de abril de 2009

O que é uma mulher?

O que é uma mulher? Lembro-me até hoje de uma supervisão de clínica psicanalítica quando minha supervisora trouxe essa questão a respeito de uma paciente. Esta pergunta aparentemente inócua ficou martelando minha cabeça por muitos dias. "Mas que diabos esta mulher quer dizer com isso?" - pensava eu. O desdobramento disso era: o que é ser uma mulher? O que levava a próxima questão: o que deseja uma mulher? A partir daí começou a cair minha ficha. O que se passa dentro da cabeça de uma mulher? O que é experenciar a feminilidade? As questões foram se multiplicando e eu passei a pensar um pouco neste que é fundamental na histeria assim como atormenta as pobres mentes dos obssessivos homens.

Minha curiosidade foi saciada um pouco ontem, enquanto eu assistia ao filme "Lírios d'Água (Naissance des Pieuvres, França, 2007)". O filme trata de maneira belíssima (e breve, apenas 85 minutos de filme) o universo feminino adolescente de três garotas totalmente diferentes, porém 
unidas pela questão central da descoberta sexual adolescente. Floriane é o estereótipo clássico da "gostosa" do colégio: tem o corpo mais desenvolvido, é desejada por todos os garotos e vista como uma "puta" pelas outras garotas; Anne é a gordinha desengonçada e divertida em busca de um lugar ao sol; Marie é franzina e instrospectiva, e a mais sensata - e é quem encaminha a narrativa.

Aparentemente pode parecer três personagens clichês-adolescentes, mas não são. A diretora estreante Céline Sciamma trata de um tema dificil e o conduz de maneira e xcelente. O primeiro mérito do filme é retratar um tema que parece tabu mesmo  nos dias atuais: a descoberta da sexualidade feminina, ainda mais adolescente. O desembaraço com o corpo, a curiosida de sexual, as experiências homossexuais tão características desta fase são naturalmente explicitadas, o que pode chocar alguns espectadores mais conservadores em 
algumas cenas - e são justamente estas cenas as melhores do filme, pois mostram sem pudor algum, acontecimentos que podem ser muito comuns ao universo adolescente feminino, porém que muitos preferem não saber (como uma iniciação sexual desagradável ou a passagem por uma fase homossexual). É o velho tema de mostrar aquilo que a maioria costuma guardar debaixo do tapete - e todo aquele que "ousa" revelar é tachado de apelativo, exagerado ou mesmo surreal.

A adolescência como uma época em que tudo beira à incompreensão, é muito singular a forma como o tema da amizade feminina é tratada no filme. As personagens por mais que "lutem" por se entender o tempo todo, se unem quando percebem estar em um mesmo barco. Outro aspecto interessante é a ausência de adultos no filme. Eles não aparecem em momento algum - um recurso interessante que parece ter sido usado pela diretora para destacar a solidão que os adolescentes sentem nesta época. 

Parece que uma das poucas vantagens que o cinema atual poderia ter em relação a outras épocas é justamente ter a possibilidade de retratar temas que dificilmente seriam aceitos em outros momentos, e que mesmo hoje parecem encomodar ainda. Talvez tenham diversos filmes que trabalharam muito bem o universo feminino, até nas mãos de diretores consagrados, porém a ousadia, pureza e honestidade com que a direção tratou do tema valem o filme.

Além das questões "reflexivas" apontadas anteriormente há de se destacar a bela fotografia (muitas cenas na água, pois os personagens se interligam através da prática do nado sincronizado) e a trilha minimalista mas muito bem utilizada. As três jovens atrizes também são iniciantes e surpreendem pela ótima interação.

Ficha Técnica

Título: Lírios d'Água (Naissance des Pieuvres, França, 2007)
Direção e Roteiro: Céline Sciamma
Elenco: Paulien Acquart (Marie), Louise Blachère (Anne), Adele Haenel (Floriane), Warren Jacquin (François), Barbara Renard (Natacha)
Para quem gosta de: cinema europeu, temas dificeis (tabus)
Pontos Altos: roteiro, fotografia, atuação das atrizes
Pontos Baixos: duração curta
Avaliação: 8,5

Trailer: