10 de setembro de 2008

O que realmente somos?

Até que ponto somos responsáveis pelos nossos atos? Em que medida somos capazes de ter consciência e senso crítico sobre nossos atos e comportamentos? Foram estas questões que ficaram martelando em minha mente ao assistir o filme "Um Crime Americano (An American Crime, EUA, 2007)".

A partir de uma história que de início poderia ser de qualquer família pobre americana nos anos 60, se desenrola um passeio pelo assustador e ao mesmo sutil mundo familiar visto no limite entre o que poderia ser a "normalidade" e a patologia em sua essência bruta. É melhor começar pela história do filme.

Trata-se da história real da família de Gertrude Baniszewski (Catherine Keener), uma passadeira pobre que faz de tudo (e mais um pouco) para sustentar seus sete filhos. Gertrude se oferece para cuidar de duas meninas cujos pais vivem em feiras pelo país e que precisavam deixá-las com alguém. Por 20 doláres por semana, Sylvia (Elen Page) e Jennie são deixadas com Gertrude (que queria somente ampliar o orçamento familiar). O que se desenrola a partir dai é a construção de um complexo jogo de poder que relaciona os personagens e que chega as raias da perversão e da loucura. Como uma família, como qualquer outra da época, estabelece uma relação de escravidão e tortura como aquela?

Sylvia aos poucos vai sendo maltratada e castigada por intrigas entre as filhas e mais tarde por simplesmente existir. Gertrude parece ter escolhido o "bode expiatório", a depositária de toda a sua maldita e porca existência. Até aí é possível acompanhar um personagem cujo perfil psicológico é doentio e perverso. O que começa a chocar é a conveniência, a aceitação passiva e em até certo ponto, a colaboração de todos na desgraça de Sylvia. Sejam as filhas que assistem a tudo terrorizadas, seja a irmã mais nova que mais apavorada ainda fica imóvel frente a tudo, seja os vizinhos que escutam a todas as formas de torturas e gritos sem querer "se meter com isso".

Em algum momento me lembrei de uma peça de teatro magnífica que assisti do Grupo Espanca! de Belo Horizonte. Chamava-se "Amores Surdos" e trazia uma visão ultra-cotidiana de uma família. Através de uma metáfora genial, a peça trazia uma cena em que a família descobria que o filho mais novo "criava" um rinoceronte sem ninguém perceber. Até que um dia a sujeira era tanta que começou a transbordar e todos se deram conta do que se passava. "Toda família esconde um rinoceronte" - dizia a mãe da família. Eu fiquei pensando muito nisto. Em todas as esquizetices e coisas estranhas que toda família tem o esforço em manter escondidas. Geralmente são pequenas coisas, uma briga que acabou mal, um monte de lixo na lavanderia, um cachorro sarnento que ninguém vê, um pai alcóolatra que ninguém aceita ser; coisas desse tipo. Como na peça, o rinoceronte era pequenininho e bonito, mas teria que ir embora. O garoto não quis e o guardou. Ele cresceu, cresceu, até que toda a sujeira transbordou.

Quantas coisas acontecem nos porões de tantas famílias que são negadas, abnegadas, recusadas a serem expostas. As vezes são pequenas caquinhas. Algumas outras podem ser verdadeiras barbáries. Crianças que caem de janelas de prédios. Crianças que são mantidas em porões pelos próprios pais. Será por que é tão dificil pensar que um pai é capaz de torturar a própria filha, ou de abusar dela, que não conseguimos acreditar que isso aconteça? Estas pessoas precisam estar totalmente foras de si para cometer os atos que cometem? É isso que me intriga. Não me importo com um certo homem se dizer a reencarnação de Cristo, mas sim com os que acreditam fielmente e o seguem. Assim como aquelas crianças de "Um Crime Americano". Gertrude e toda sua desgraça não me surpreende. O que choca é ver que o limite entre a inocência e a perversão é muito tênue. Sim, eles já foram aquele "bolinho de carne perverso polimorfo" - como descreveu Freud, mas não a perversão em si que encomoda. É como ela se estrutura. Sozinha ela é um crime, uma patologia aos olhos da sociedade neurótica que a teme e a deseja ao mesmo tempo. Estruturada socialmente, ela torna-se a bárbarie.

Meu raciocínio levou a uma questão próxima. Ao senso crítico que o homem tem de seus atos. Ou melhor, o quanto ele pode ter noção do que significam seus atos e a consequência destes para si e para os outros. Penso não somente neste caso extremo do filme. Mas em diversas situações. Pais que têm filhos somente por obrigação, seja interna ou por pressões diversas externas. Filhos rejeitados sem saber ao menos o por quê. Atos inconsequentes passados em branco por aqueles que fazem. Todos erram, todos cometem atos impensados. Mas não ter o mínimo de reconhecimento sobre o que se fez ou não se responsabilizar, ou pior, ver tudo acontecer e nada fazer? Até que pontos assumimos nosso papel real em nossas vidas e no mundo onde vivemos? As vezes somente os extremos e a "sujeira transbordando" que nos fazem tomar consciência do que realmente somos.

Trilha Sonora: The Cure "The Cure" (2004); Devastations "Coal" (2006).